ESTADÃO - Amcham Brasil - 04 Maio 2018 | 11h12
Duas premissas muito importantes durante um processo seletivo para uma vaga de emprego são a boa comunicação e facilidade em trabalhar em equipe. Essa tendência de valorizar competências interpessoais pode abrir portas para muitas pessoas. Ao mesmo tempo, também pode ser excludente, principalmente quando pensamos em pessoas autistas.
Specialisterne |
O autismo, ou Transtorno do Espectro Autista (TEA), se caracteriza pelo “déficit na comunicação e interações sociais, comportamentos repetitivos e áreas restritas de interesse”, segundo a Associação de Amigos do Autista (AMA). Há diversos níveis dentro do espectro autista, que vão desde quadros mais graves e que afetam o desenvolvimento intelectual, incluindo a fala, até quadros bem mais brandos, como é o caso da Síndrome de Asperger. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam que cerca de 1% da população mundial está dentro do espectro do autismo. A organização aponta ainda que mais de 80% dos adultos com autismo está desempregado.
A falta de flexibilidade para entender essas pessoas pode custar caro em termos de talento. Alguns dos maiores gênios e intelectuais dos últimos anos foram diagnosticados ou têm forte suspeita do diagnóstico por apresentarem sintomas e comportamentos associados ao TEA. Lionel Messi, eleito cinco vezes o melhor jogador de futebol do mundo, Albert Einstein, vencedor do Prêmio Nobel de física, Bill Gates, fundador da Microsoft e Tim Burton, renomado cineasta, demonstram que o autismo não é sinônimo de falta de competência. No entanto, em uma entrevista ou dinâmica padrão, esses nomes poderiam ser descartados durante o processo seletivo.
Esse foi o insight do fundador da Specialisterne, empresa social fundada na Dinamarca e que trabalha com o propósito de criar empregos para pessoas com TEA. Thorkil Sonne percebeu que seu filho autista tinha diversos talentos que seriam muito úteis a empresas, principalmente para as de tecnologia: capacidade de atenção e concentração, boa memória, atenção aos detalhes.
Banco de talentos
No Brasil desde 2015, a empresa conta com um projeto de formação voltado para a área de tecnologia para pessoas com autismo. O time da organização conta com especialistas em TI e psicólogos, que ajudam no desenvolvimento de habilidades sociais. Segundo Marcelo Vitoriano, diretor geral da Specialisterne no Brasil, a formação conta com alguns momentos importantes: a adaptação, identificação de talentos e habilidades de cada pessoa; no segundo momento, são oferecidos cursos voltados para habilidades técnicas como desenvolvimento de software, pacote Office e também desenvolvimento social. Após os workshops, eles participam de atividades em empresas para verificar a performance e os aprendizados. A empresa então deixa um banco de talentos atualizado com os candidatos para indicar em caso de parcerias com outras organizações.
Vitoriano lembra que uma parte essencial do trabalho é a preparação de empresas interessadas na contratação. “Temos processo forte de educação, workshops, onde falamos um pouco sobre autismo, suas características e necessidades. Abordamos também que talentos e benefícios pessoas com TEA podem trazer para uma equipe e como que a empresa pode facilitar a adaptação, criar um ambiente de apoio. A gente costuma falar que a inclusão das pessoas com autismo é o projeto que valoriza a diversidade, mas também contribui para o engajamento do time”, relata.
A atenção no processo seletivo também é fundamental. Antes da entrevista, a Specialisterne conversa com o gestor e a equipe de Recursos Humanos para falar sobre o candidato, orientar a forma de condução da entrevista e pensar nos detalhes e sutilezas que podem atrapalhar nessa troca. “É um processo seletivo diferente. As pessoas autismo precisam de perguntas mais fechadas e concretas. Quando o recrutador pede algo do tipo ‘me fala da sua experiência profissional’, é muito amplo para elas. É preciso fazer a adaptação com o recrutador antes”, ressalta.
A Specialisterne já atendeu gigantes como Deloitte e Microsoft. A SAP também é uma dessas empresas parceiras. Um programa global da gigante de tecnologia chamado “Autism at Work” [Autismo no trabalho] tem como meta de ter 1% de seu quadro de colaboradores formada por profissionais com TEA. A gerente de RH da SAP, Eliane Demitry, relata que a iniciativa vem desde 2013, a partir da identificação que pessoas com TEA representavam diversidade e poderiam trazer benefícios e vantagem competitiva para o negócio.
Eliminando barreiras com ações
“A principal dificuldade hoje é transpor a barreira dos próprios gestores. Há questionamentos de ‘como vou lidar com essa pessoa’ ou ‘como será o dia a dia’, mas quando apresentamos o que é o TEA e como essas pessoas são, isso vai quebrando a barreira. Nesse projeto, depois que as pessoas entram, elas tem comportamentos que surpreendem muito, tanto de atitude quanto na sua forma de trabalhar, em sua dedicação com o trabalho”, comenta. Hoje, a empresa tem 128 pessoas autistas contratadas globalmente. No Brasil, são 11. Para Demitry, uma das principais portas de entrada hoje é o programa de estágio, justamente por trabalhar mais de perto com o desenvolvimento da pessoa. Cada contratado possui um tutor ou mentor que ajuda a pessoa com coaching e reuniões a cada 15 dias para ajudar em melhorias de ambas partes. “Isso tem ajudado na contratação e na adaptação também para as pessoas que trabalham junto daquele colaborador”, ressalta a gerente.
Como dica para empresas que se interessam por tais tipos de programa de inclusão, Marcelo Vitoriano recomenda principalmente ações na adaptação do processo seletivo e também no acompanhamento próximo às pessoas com TEA. “As empresas tem que buscar parceiros que possam orientar a identificar a possibilidade de trabalho e fazer o trabalho de preparo para receber a pessoa de uma forma que ela se sinta bem naquele ambiente. Não tenha a pretensão de querer fazer tudo sozinho, busque benchmarkingcom empresas que já fizeram ações e trabalhos”, indica.
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