pioneiro.clicrbs |Alysson Muotri18/09/2018
Pesquisador brasileiro radicado nos Estados Unidos busca maneira de tratar o transtorno na origem, usando genética de ponta e células-tronco
Foto: Porthus Junior / Agencia RBS |
Se depender do trabalho de Alysson Renato Muotri, o autismo está com os dias contados. Um dos biólogos mais importantes do Brasil, Muotri é pioneiro em pesquisas que ajudaram a descobrir as causas e mapear tratamentos mais eficazes para o Transtorno do Espectro Autista (TEA).
Professor e diretor do Programa de Células-Tronco da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD), nos Estados Unidos, ele conseguiu usar células-tronco para recriar "minicérebros" em estágio embrionário e determinar quais mutações genéticas provocam certos "tipos" de autismo. A técnica possibilita o uso mais certeiro de medicamentos para combater o transtorno. Em 2016, ele fundou em São Paulo a Tismoo, startup de medicina personalizada cujos estudos comprovaram a relação entre o vírus da Zika e casos de microcefalia ocorridos no Brasil.
Muotri esteve em Caxias do Sul na noite da última quarta-feira, para participar do 1º Seminário sobre Autismo da Serra Gaúcha. Na ocasião, ele conversou com o jornal Pioneiro sobre como a ciência entende o autismo hoje e quais são as possibilidades de tratamento para o futuro. Confira trechos da entrevista:
Pioneiro: O seu trabalho é focado no mapeamento genético dos pacientes. Como isso nos auxilia a entender o autismo?
Alysson Muotri: O autismo tem duas causas, uma genética e outra ambiental, que a gente chama de "insultos" que acontecem no útero, como uma hipóxia (diminuição do oxigênio para o feto) ou infecção, isso pode causar o transtorno. Mas na maior parte dos casos tem uma base genética. E, durante muito tempo, não sabíamos que base era essa, porque o sequenciamento do material genético era ainda um processo muito caro. Conforme isso vai barateando, vamos sequenciando mais crianças e indivíduos autistas e fazendo uma lista de genes que são causadores do autismo. Hoje, vemos o autismo da mesma forma que o câncer era visto no passado. Antigamente você falava, "fulano tem câncer". Hoje você não fala mais isso, fala que tem câncer no sangue, ou de pulmão. Tem diferentes tipos e não há uma droga que trate todos, alguns não têm cura e para muitos já tem um tratamento. O autismo está chegando nesse estágio. Estamos definindo, por meio da genética, os diferentes subtipos de autismo. Tudo parece a mesma coisa, mas quando você presta atenção, há alguns que provocam epilepsia, uns que são verbais, outros não. Apesar de terem muita coisa em comum, tem muita coisa diferente. Começa a ficar mais claro do ponto de vista genético. Alguns dos genes descobertos são suspeitos de longa data, são genes que alteram a conexão dos neurônios. Outros foram uma grande surpresa, atuam no metabolismo do DNA dentro da célula.
Como isso pode possibilitar tratamentos melhores?
Muotri: Olhando para esses genes e descobrindo pela ciência quais são as vias moleculares em que eles atuam, se pensou, será que não se consegue desenhar drogas específicas para cada via? Então os ensaios clínicos, na maior parte dos casos nos Estados Unidos, acontecem através da genética. Se temos uma droga que achamos que funciona para o gene x, y ou z, vamos recrutar autistas com mutações no gene x, y e z. Há pesquisas que já estão muito mais avançadas, em fase clínica, e possivelmente vão trazer uma melhoria. Em outras, são autismos dos quais não se conhecia os genes e não sabemos em que via atuam. O meu laboratório dá uma contribuição para tentar entender como esses genes funcionam dentro da célula, e para isso usamos o modelo de minicérebro. É uma estrutura feita a partir de células-tronco que mimetizam o estado embrionário do desenvolvimento neural humano — como não temos acesso em útero, durante a gravidez, recapitulamos isso em laboratório. A gente coloca mutações em diferentes genes relacionados ao autismo e vê o que acontece com esses minicérebros. Em muitos casos, consegue-se observar alterações claras, e o próximo passo é tentar descobrir drogas que façam a reversão disso. Há áreas, ou subtipos, que já estão mais avançados, temos drogas e já estamos entrando em ensaios clínicos. Em outros casos ainda não temos noção de que droga iria funcionar. É mais ou menos por aí que estamos.
A comparação com o câncer tem a ver com ligar cada tipo de mutação a certos sintomas e tratamentos? Ou o espectro é mais gradual?
Muotri: Isso quer dizer que ou saberemos o tipo de resposta (para o tratamento), ou se vai ser regressivo ou não. Só que, diferente do câncer, que tem umas dezenas, o autismo talvez seja algumas centenas (de tipos). E, muito possivelmente, eu sempre falo que o futuro do autismo é o fim do autismo. Porque todo o espectro autista vai ser quebrado em diferentes síndromes. Isso já vem acontecendo: conforme definimos a base biológica naquele gene, naquele subtipo, já damos um nome de uma síndrome e retiramos ele do espectro. Isso está acontecendo cada vez mais frequentemente. Você vê o reflexo disso, nos Estados Unidos, quando os pais recebem o diagnóstico genético e acabam se associando, criando uma página no Facebook, todos com filho com a mesma mutação, e se reúnem para buscar fundos para auxiliar a pesquisa naquele gene específico. E começam a dar apoio. Está muito interessante ver como os pais estão tomando a dianteira. O modelo tradicional era de pedir verba do governo, mas os pais estão tomando a frente nesse processo.
O tratamento sempre se dá à base de medicamentos?
Muotri: Tem uma outra coisa que começa a surgir na prática, que é um conceito antigo, se chama terapia gênica. Uma vez que você descobre qual é o gene, qual é a mutação, a ciência tem aprimorado ferramentas de edição do DNA. Hoje em dia está muito em pauta uma técnica com uma enzima que faz essa alteração de DNA. Então, sabendo qual é a mutação, em teoria você poderia usar uma dessas enzimas e corrigi-la. Conseguimos fazer isso muito bem no laboratório, eu pego um minicérebro que tem uma mutação no gene do autismo, coloco essa enzima e reverto, completamente. O grande desafio é colocar essas enzimas nos 80 bilhões de neurônios que existem no cérebro de uma pessoa.
Esse modelo de minicérebros tem potencial para ajudar na cura de outras doenças?
Muotri: Antes eu vou falar das limitações do modelo. Apesar de o chamarmos minicérebros, não é aquela imagem de um cérebro perfeito ali. Na verdade é muito mais simples, não tem todas as células, é pequeno, não é vascularizado, é só um modelo mesmo. Mas a maior característica dele é que recapitula o estágio embrionário, e faz isso muito bem. Então, para doenças do neurodesenvolvimento, já é uma ferramenta fantástica. Porém existem outros laboratórios pensando, "será que eu não consigo modular o (mal de) Alzheimer, o Parkinson?". Só que o sintoma da doença neurodegenerativa aparece muitas vezes muito tarde. Então você teria de ter um jeito de envelhecer esse minicérebro sem ter de esperar 60 anos. Esse é um dos bloqueios para usá-lo para doenças neurológicas, mas o modelo deve ter sucesso em doenças do neurodesenvolvimento.
Há alguma perspectiva para que esse tipo de tratamento esteja acessível à população em geral?
Muotri: Como toda tecnologia, ela tende a evoluir e se tornar popular, especialmente se é uma tecnologia transformadora. A evolução do sequenciamento genético tem evoluído dramaticamente, semana passada mostramos que é possível fazer um minicérebro com 100% a menos do custo que fazíamos antes. As tecnologias tão evoluindo, mas ainda são caras. Mas eu vou dar um exemplo de como um sistema de saúde consegue ainda ter lucro, mesmo com uma tecnologia cara: a primeira terapia gênica que está sendo aprovada pelo FDA (Food and Drug Administration, agência federal que regula o setor de medicamentos nos Estados Unidos) é para a distrofia muscular infantil. O bebê nasce com um problema que o músculo não segura o corpo, não tem resistência nenhuma. A mortalidade é muito alta nos primeiros anos de vida. Isso é devastador para os pais, que acessam o seguro saúde, que faz de tudo para manter esse bebê vivo, tenta todos os medicamentos possíveis, e a criança começa a apresentar uma série de outros problemas. O custo nos primeiros anos três anos de vida, para o seguro, é de cerca de US$ 10 milhões. O custo da terapia gênica é de US$ 1 milhão. Quando a empresa anunciou que ia oferecer esse tratamento por esse preço, todo mundo pensou que isso nunca ia chegar na população. Só que nunca foi a intenção vender para a família. A intenção foi vender para o seguro de saúde. Então, acho que esse tipo de compensação vai fazer muito sentido. O sequenciamento genético também, há doenças que as pessoas não fecham o diagnóstico e se mantêm naquele tratamento a vida inteira, enquanto é muito mais barato fazer um exame genético, com a chance de você descobrir o que é e acertar o tratamento. Estima-se em US$ 3,2 milhões o custo de acompanhamento do autista nos Estados Unidos. Mas ainda é difícil, mesmo lá. Alguns estados estão mais na frente, e eventualmente vai chegar no Brasil também.
Nenhum comentário:
Postar um comentário