Na 1ª sessão de condicionamento lúdico iniciei com abordagem adaptando o método Son Rise® à odontologia, fui ao encontro do paciente, que estava sentado na sala de espera realizando movimentos estereotipados com o tronco para frente e para trás, sem notar minha presença. Abortei o uso do jaleco branco e nas mãos levava um carrinho de plástico. Não falei nada, apenas passava na frente dele com o carro entre os dedos. Sentei ao seu lado e aos poucos fui empurrando o carrinho sobre sua perna, imediatamente ele pegou. Comemorei com aplausos e disse: “muito bem!”, como indica o Programa Son Rise®. Dessa forma estava sendo motivado a interagir e a intenção era “entrar no mundo da pessoa com autismo”. Aos poucos foi aceitando que manipulasse o carrinho sobre suas pernas. Mas precisava mais, teria que entrar ao consultório e era um ambiente novo, desconhecido, cheio de estímulos visuais que podem sobrecarregá-los e serem competitivos ao condicionamento, além de odores que poderiam desencadear crises nesse paciente. Devemos simplificar o ambiente de trabalho (4). Na cabeça, fiz a opção de usar uma tiara com 2 borboletas presas por longas molas que se mexiam num simples toque, o retorno com essa ação era buscar o contato visual, uma das mais difíceis maneiras de relacionamento do paciente autista. Associei o uso da tiara à música “Borboletinha” das cantigas infantis, em tom baixo e buscando o contato visual. Aos poucos estendi as mãos ao paciente e o conduzi ao consultório. Mais uma vez deu tudo certo e ele me seguiu. Comemoramos novamente: “Muito bem! Formidável!”, e mais aplausos. O Programa Son Rise® é lúdico. A ênfase está na diversão. As atividades são adaptadas para serem motivadoras e apropriadas ao paciente mesmo que ele seja um adulto. Uma vez que a pessoa com autismo esteja motivada para interagir com o profissional, este poderá criar situações de aprendizagem – e no nosso caso é conhecer, entender e aceitar o tratamento odontológico. O paciente tem que ter segurança no profissional, confiar em suas palavras e gestos, e o profissional não deve nunca quebrar esse vínculo, respeito e confiança. Entramos no consultório e sentamos sobre um tapete de EVA colocado no chão, onde alguns carrinhos nos esperavam para prosseguir o condicionamento. Falo em prosseguir porque o mesmo já foi iniciado no 1º contato, ainda na recepção, onde detalhes não podem ser esquecidos, já que para esses pacientes não são detalhes. Na altura de nossos olhos estava fixo na parede um espelho de 0,50 x 1,00 m, para tentarmos de várias maneiras o contato visual. Alguns pacientes autistas buscam o contato visual através da imagem refletida no espelho e devemos ficar atentos a isso e comemorar imediatamente quando esse contato for alcançado, motivando para que ele seja repetido. Sempre que comemoramos a habilidade adquirida estamos fortalecendo para que ela se repita. Quando um comportamento é fortalecido é mais provável que aconteça no futuro (7) . Podemos comemorar com aplausos, bolinhas de sabão e várias tentativas até encontrar o que realmente motiva essa pessoa. Buscamos o contato visual porque será o melhor caminho de comunicação para o paciente perceber que você existe e aceitar você para seu mundo. Não podemos ter medo de ousar, confiar sempre, estudar a técnica e aplicá-la com amor. Nessa sessão, conseguimos o contato visual por três vezes, além disso o paciente entrou espontaneamente ao consultório, observou tudo, sentiu alguns objetos com as mãos e aceitou o contato das minhas mãos – que, nesse momento, já estavam com as luvas.
O presente trabalho mostra o atendimento do paciente autista de maneira mais lúdica, é uma adaptação feita pela autora do programa Son Rise® ao atendimento tornando esse momento mais prazeroso e inovador. É usada uma abordagem relacional, onde a relação entre as pessoas é valorizada. As sessões de atendimento são preparadas para facilitar a interação profissional-paciente e subsequente aprendizagem, que no caso é a realização do tratamento odontológico. Dessa maneira minimiza-se o estresse durante as sessões convencionais de odontologia para esse paciente, diminuindo também o número de intervenções com anestesia geral.
INTRODUÇÃO
A odontologia para pacientes com necessidades especiais tem um grande desafio no que diz respeito ao atendimento ambulatorial do paciente autista em razão da dificuldade de relacionamento social que este apresenta. Psicólogos e especialistas em desenvolvimento infantil têm apontado há décadas que crianças que possuem desenvolvimento típico aprendem melhor através de experiências interativas e emocionalmente prazerosas com outras pessoas. Nestas interações, a criança é um participante ativo ao invés de um recipiente passivo de informação. Nos últimos dez anos, os pesquisadores têm percebido que o mesmo vale para crianças com autismo e dificuldades similares. As novas perspectivas e pesquisas em relação ao autismo estão começando a perceber o que o Programa Son Rise® já vem praticando há anos. Este programa tem sido utilizado internacionalmente por mais de 30 anos com crianças e adultos representantes de todo o Espectro do Autismo e dos Transtornos Globais do Desenvolvimento. O Programa Son Rise® é centrado na pessoa com autismo. Isto significa que o tratamento parte do desenvolvimento inicial de uma profunda compreensão e genuína apreciação da pessoa, de como ela se comporta, interage e se comunica, assim como de seus interesses (4). O Programa Son Rise® descreve isto como “ir até o mundo da pessoa com autismo”, e é isso que fazemos para alcançar com êxito o tratamento odontológico.
O autismo infantil é um transtorno global do desenvolvimento caracterizado por um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes dos três anos de idade, e apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações, por exemplo: fobias, perturbações de sono ou da alimentação, hetero ou autoagressividade, hand flapping (agitar as mãos), rodopiar etc. (6).
O objetivo desse trabalho é apresentar a técnica usada pela autora para facilitar o tratamento odontológico, minimizando o estresse e os custos com o procedimento, favorecendo a inclusão social e treinamento para que mais profissionais usem a técnica, tornando-se aptos a realizar o atendimento em nível ambulatorial.
RELATO DE CASO
Paciente do gênero masculino, 14 anos, autista, apresentou-se na clínica de odontologia do Projeto Social “Vila Maria – Um Caso de Amor”, da Escola de Samba Unidos de Vila Maria, acompanhado da mãe à procura de tratamento. Após realização de uma anamnese criteriosa foi constatado ser um autista de baixo funcionamento, sem verbalização, riso inapropriado, pouco contato visual, resistência à mudança de rotinas, sem acompanhamento psicológico, terapêutico ou escolar, que nunca havia ido ao dentista e apresentava dificuldade de aceitar a higienização bucal feita pela mãe. Foi relatada sua preferência por carros de brinquedo, e o que realmente mais apreciava era comer. Não gostava de ser contrariado e se sentir preso, nessa situação poderia desencadear uma crise. Essa anamnese foi realizada só com a mãe sem a presença do paciente porque o tempo da entrevista poderia deixá-lo nervoso. Após a entrevista iniciou-se o planejamento das sessões de condicionamento lúdico para o tratamento odontológico. Nosso vínculo seria conseguido através dos carrinhos e esse era o primeiro caminho.
Na 2ª sessão de condicionamento lúdico, o paciente chegou e imediatamente entrou ao consultório procurando o carrinho usado na sessão anterior. Meu planejamento era que ele sentasse na cadeira odontológica, então prendi o carrinho no refletor com fita crepe e deixei a luz acesa para chamar a sua atenção. Ótimo, ele encontrou o carrinho e sentou na cadeira. Bati palmas, comemorei e, é claro, dei o carrinho em suas mãos. Nesse momento consegui mais um contato visual e percebi que nosso vínculo estava ficando mais forte. Aproveitei o momento para apresentar a seringa tríplice lançando um pouco de ar no carrinho e depois na perna do paciente, subindo a caminho da boca. Nesse momento gosto de fazer uso das músicas infantis, brincando, cantando e apresentando os instrumentos do consultório. É importante observar cada reação de nosso paciente, apresentar verbalmente cada ação para não ser uma surpresa e fazer de maneira calma sem assustar nem causar estresse. Podemos usar figuras para apresentação dos instrumentos do consultório e depois mostrar o objeto propriamente dito. Parece que dessa forma eles reagem melhor a novidades, essas figuras devem ser simples e exemplificar realmente o objeto de maneira clara – como a fotografia de mãos com luvas, mostrando as mãos com as luvas para que ele possa sentir sua textura. Se a opção for atender pacientes autistas não pense que tudo isso “são detalhes”. Ótimo, aceitou a tríplice, as luvas e a manipulação da face, com auxílio de fantoches de dedo e todo apoio lúdico conseguimos acesso à cavidade bucal, e a higiene oral com escova e pasta foi realizada. Nunca se esquecer de recompensar: muito bom! Bolinhas de sabão. Isso é o que afirma o Programa Son Rise®. Para essa sessão já estava ótimo.
Na 3ª sessão ele entrou muito tranquilamente e sentou na cadeira, arrancou o carrinho do refletor e começou a gritar alguma coisa que não entendi. De repente o compressor ligou e foi um desastre, uma gritaria só. Ele batia a mão na cabeça e movimentava o tronco para frente e para trás. Pedi que desligassem o compressor mas já era tarde, encerramos a sessão.
A 4ª sessão foi marcada com intervalo de uma semana para diminuir o estresse anterior. Estava muito ansiosa ao recebê-lo, mas foi tudo bem: ele entrou, sentou e arrancou o carrinho do refletor. Desta vez o compressor já estava desligado! Iniciamos com profilaxia com uso da baixa-rotação, 1º no carrinho, depois na mão, no rosto e finalmente na boca. Foi ótimo, consegui a profilaxia de todo arco superior e deu para terminar o exame clínico. Conforme fazia a profilaxia, ia mexendo a cabeça para que as borboletinhas balançassem e foi ótimo, consegui por várias vezes o contato visual e percebi que já tínhamos um vínculo. Sessão terminada para não estressar o paciente. Nesse momento sempre pego o brinquedo e guardo afirmando que irá encontrá-lo na próxima sessão e sempre dá certo no retorno.
A 5ª sessão foi a mais tranquila de todas: o paciente entrou, sentou, arrancou o carrinho do refletor e ficou com a boca aberta. ÓTIMO! Terminei a profilaxia e marcamos retorno bimestral para controle e prevenção, porque o paciente não apresentava cáries.
CONCLUSÃO
Para conseguir o tratamento odontológico do paciente autista em ambulatório sem uso das faixas de contenção, é preciso dedicação do profissional, estudo da técnica proposta com uso de métodos como Son Rise, compreensão das necessidades e limitações dos indivíduos, acreditar que é possível, paciência, tentar várias vezes cada procedimento e ter muito amor no que se faz.
BIBLIOGRAFIA
1. Baron-Cohen et AL. Psychological markers in the detection of autism in infancy in a large population. British Journal of Psychiatry, n.168, p.158-163, 1996.
2. Frith,U. Autism and Asperger Syndrome .Cambridge University Press, 1991.
3. Gauderer, E. Christian. Autismo. São Paulo: Atheneu; 1993.
4. Hogan. Autism Treatment Center of America. Home of the Son-Rise Program®. Modelo de desenvolvimento do Programa Son-Rise®, tradução: Barreto,AD e Inspirados pelo autismo, 2007.
5. Katz, CRT, et al. Abordagem psicológica do paciente autista durante o atendimento odontológico. Odontologia Clín.Cientif. Recife, 8 (2):115-121, a br/jun.,2009
6. Moore, ST. Síndrome de Asperger e a escola fundamental: soluções práticas para dificuldades acadêmicas e sociais. São Paulo: Associação Mais 1,2005.
7. Zink,AG et al. Atendimento odontológico do paciente autista – Relato de caso. Revista ABO Nacional – vol.16, nº5, 313-316, out/Nov.2008.
Contato: zinkpinho@yahoo.com.b
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